STJ: É crime não recolher ICMS declarado
Por Graciela Ribeiro / Artigos
Deixar de recolher ICMS próprio, ainda que declarado, é crime, diz STJ
Falta de pagamento do imposto pode levar a pena de seis meses a dois anos de detenção.
Há tempos se discute se a falta de pagamento de tributos configuraria crime. Depois de muito debate, os Tribunais chegaram à lógica conclusão de que o não recolhimento de tributos aos cofres públicos configuraria mero inadimplemento, não se configurando, portanto, a infração penal. Mais precisamente, concluíram que somente haveria crime se o contribuinte deixasse de recolher tributos descontados ou cobrados de outra pessoa, tal como as retenções em fonte do Imposto de Renda e das Contribuições Previdenciárias. Esse entendimento vinha sendo aplicado, de forma pacífica, desde então.
Sobre o assunto, nunca é demais lembrar que todos os artifícios para a cobrança de tributos não pagos já estão previstos em lei, devendo a autoridade fiscal, quando o caso, efetuar o lançamento dos valores que entende devidos; dando ao contribuinte a oportunidade de se defender e, uma vez concluída a fase administrativa em favor do Fisco, inscrever o débito em dívida ativa. Se mesmo assim não houver regularização, a autoridade pública poderá promover a execução judicial requerendo, inclusive, a expropriação de seus bens. Tem-se que, dentre os artifícios disponíveis, não se encontra a coação de natureza penal.
Entretanto, conforme noticiado, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o não recolhimento do ICMS devido em operações próprias configura crime, ainda que os valores tenham sido declarados regularmente à autoridade fiscal. Ainda no entendimento da Corte, esse ato seria punido com pena de detenção que pode perdurar de seis meses a dois anos, além de aplicação de multa. Vale ressaltar que essa decisão uniformiza o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão, trazendo uma enorme reviravolta na orientação que vinha sendo seguida pelos Tribunais.
Por seis votos a três, o colegiado responsável por examinar processos de natureza penal acompanhou o entendimento do ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do caso onde a questão foi discutida.
De acordo com Schietti, em qualquer hipótese de não recolhimento, comprovado o dolo, ou seja, a intenção, configura-se o crime previsto no artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990, que dispõe sobre crimes contra a ordem tributária.
Pelo dispositivo, é crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
O tema foi julgado em um pedido de habeas corpus (nº 399.109) proposto pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina. No processo, alega que deixar de recolher ICMS em operações próprias, devidamente declaradas, não caracteriza crime, mas “mero inadimplemento fiscal”.
O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJ-SC) afastou a sentença de absolvição sumária. No STJ, após algumas sessões e pedidos de vista, prevaleceu o voto do relator, ministro Rogério Schietti Cruz. O magistrado votou pela condenação. Em pedido de liminar que negou em 2017, afirmou que apesar dos argumentos da defesa serem semelhantes à fundamentação de decisões da 6ª Turma, a questão ainda não era uniforme na Corte. Há decisões em sentido oposto na 5ª Turma. Segundo o ministro, os empresários podem pensar que é muito mais vantajoso deter valores do tributo do que se submeter a empréstimos no sistema financeiro, o que teria consequências negativas para os Estados. Para ele, porém, não seria possível absolver os contribuintes que deixaram de recolher o ICMS que foi cobrado do adquirente da cadeia de consumo e que deveria recolher aos cofres públicos. De acordo com o voto do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que acompanhou o relator, o que se criminaliza é o fato de o contribuinte se apropriar de valor de imposto descontado de terceiro — do consumidor ou substituto tributário.
De acordo com o voto vencedor, o assunto tem grande relevância social e econômica, e muitos deixam de pagar impostos porque as consequências são “menores”. Para ele, não seria possível absolver os contribuintes que deixaram de recolher o ICMS que foi cobrado do adquirente na cadeia de consumo. Por isso, o não recolhimento do ICMS deve ser considerado apropriação. Em seu voto chegou a citar o julgamento do STF que excluiu o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, por entender que o imposto não é parte da receita da empresa, mas valor que deve ser repassado ao Estado, tratando-se de "smples ingresso de caixa".
Como a decisão ainda não foi publicada, restam dúvidas sobre a extensão desse novo entendimento; por exemplo, não está claro se um contribuinte que ainda está se defendendo ou discutindo a dívida em processo administrativo (com suspensão de exigibilidade, portanto) ou até mesmo em processo judicial poderá vir a ser denunciado na esfera penal. De todo o modo, nota-se que a decisão é alarmante e traduz, de forma clara, a insegurança jurídica que vem sendo vivenciada nos últimos anos. Em um país mergulhado em grave crise financeira, voltamos a confundir dívida fiscal com crime.
Nesse primeiro momento entendemos que é necessário compreender a extensão da decisão e correspondente interpretação. É provável que a caracterização do crime pressuponha a intenção (dolo) de não pagar o tributo e não a impossibilidade.
Declarou, mas não pagou
No caso que serviu como paradigma para que o assunto fosse debatido, duas pessoas que deixaram de recolher, no prazo legal, o valor do ICMS buscavam a concessão de um habeas corpus após serem denunciados pelo Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC) como incursos no artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990.
A defesa alegava que o ICMS, apesar de não ter sido recolhido, havia sido declarado ao Fisco e, por isso, a ação não caracterizaria crime, mas mero inadimplemento fiscal.
De acordo com o ministro Schietti, porém, para a configuração do delito de apropriação indébita tributária – tal qual se dá com a apropriação indébita em geral – “o fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não pressupõe a clandestinidade”.
Ainda de acordo com Schietti, é inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, “notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como ocorreu no caso”. Para ele, eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar “há que ser esclarecida com a instrução criminal”.
Cobrança obliqua
De acordo com o julgamento, a responsabilização acontece a partir do momento em que o contribuinte deixa de recolher o tributo, mesmo que ele tenha declarado. Isso é o mesmo que uma cobrança de tributo por meio oblíquo. O contribuinte vai ficar com medo de ir à juízo discutir uma cobrança porque pode ser responsabilizado penalmente.
O entendimento fere o direito de defesa, por não haver ainda a constituição do crédito tributário. O que pode acontecer é o Ministério Público oferecer denúncia sempre que tiver um processo administrativo ou judicial ainda em curso. Se o penal for mais rápido que o tributário, o empresário pode ser condenado criminalmente e lá na frente o juiz da esfera tributária diz que o tributo não era devido.
fonte: Valor Econômico